O cheiro
Era uma segunda-feira,
dia em que Márcia quase sempre trabalhava até mais tarde. Tudo o que tinha sido
acumulado na outra semana era organizado e terminado. Naquele segunda-feira
específica, no entanto, o trabalho não era muito e acabou mais cedo do que o
previsto. Feliz, Márcia foi para casa,
esperando encontrar o marido e aproveitar o tempo livre de um dia qualquer.
Assim que abriu a
porta, sentiu um cheiro forte pairando no ar. Suas narinas foram incendidas e
seu olfato apurado fazia com que quase fosse possível sentir o gosto daquele
perfume adocicado. Incrédula, pôs em xeque a capacidade de análise dos seus
próprios sentidos. Era possível que o marido estivesse fazendo o que ela
pressentia que ele fazia? Seu estômago embrulhou e ela teve vontade de vomitar.
Dentro de sua própria casa, como ele teve tamanha coragem? Ela se perguntava
entristecida.
Haviam conversado
muitas vezes sobre aquilo. Ela sempre dizia que o lado dele era compreensível. Todos
temos instintos, Márcia repetia sem muita credulidade. Ele sempre concordava
com um rosto brincalhão e mudo. Ela sorria. Realmente acreditava que ele havia
abandonado os tempos antigos e que tinha se tornado uma pessoa diferente. Mas,
as roupas amassadas no sofá e aquele cheiro que impregnava os ambientes não
mentiam. O marido nunca havia deixado de lado os velhos hábitos.
Márcia estava
desnorteada. Queria dar um passo adiante, queria gritar, mas se sentia
paralisada, com medo de perceber que seus instintos estavam certos, medo de ver
que seu companheiro de tantos anos não era a pessoa que ela julgava tão bem
conhecer. Uma música dançante ressoava dos alto-falantes do celular do marido,
ele devia estar se divertindo. Apesar do coração acelerado, Márcia caminhava
sorrateira, com o rosto sisudo e os olhos quase em lágrimas. Ela não queria
desculpas. Ele teria que admitir.
Ao chegar à cozinha,
Márcia viu o marido. Ele não vestia quase nada, apenas um avental de
cozinheiro. O cheiro estava mais forte do que nunca e a louça suja atulhava a
pia. Na mesa, um prato com restos de sangue. A frigideira chiava ao receber mais
um pedaço grande de bife.
O marido sentiu uma
presença na cozinha e voltou a cabeça para trás. Márcia estava parada na porta,
com as pupilas dilatadas e lacrimosas. Ao ver sua esposa, ele arregalou os olhos
e se encolheu como uma criança arteira sob o julgo da mãe. Era a primeira vez
que ele comia carne em anos. Desde que havia começado a namorar Márcia, adotou
para si o vegetarianismo, pois ela era apaixonada pelos animais e ele,
apaixonado por ela. Todavia, sua memória
gastronômica, mesmo depois de trinta anos, ainda o perturbava com a lembrança
de uma picanha mal passada ou de uma fraldinha ao alho.
Ele faria cinquenta
anos em um mês. Que mal havia em comer uma ou duas bistecas? O que era um coraçãozinho
de galinha? O que era uma costelinha de porco? Ah, uma deliciosa costelinha de
porco... Às favas com esse vegetarianismo! Ele levantou a cabeça, queria se
rebelar. Estava cansado de não comer o que queria comer.
Márcia permanecia
imóvel como uma estátua. Apenas seu rosto se movia em sorrisos tortos de desgosto.
Ela se sentia traída. Era preferível vê-lo com outra mulher a vê-lo aos
beijos com um pedaço de filé mignon sangrento. Depois de trinta anos, três
filhos criados, e umas muitas horas perdidas explicando as vantagens do
vegetarianismo para si e para o ambiente, ele ainda era capaz de se deliciar
com alguns pedaços de cadáver.
O marido caminhou até
Márcia, estava decidido a não voltar atrás. Ele amava a esposa, mas queria
poder comer o que quisesse. Com um garfo em punho e seminu, andou como um
soldado em direção ao tiro de guerra. Os olhos de Márcia o fuzilavam. Colocou a
mão no rosto da esposa, queria começar a falar, abriu a boca, sentiu seu
próprio hálito de sangue e alho, respirou fundo, engoliu as palavras. Fria,
Márcia se virou e saiu em direção a lugar nenhum.
Um comentário:
EXCELENTE!!!!
Gostei bastante da forma como você conduziu a terceira pessoa, e o desfecho do conto foi muito brilhante!
Sinto pena apenas dos filhos, que terão de escolher entre um comedor de cadáveres ou uma sensata mãe que não tolera o sofrimento e a escravidão animal.
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