Desassossego
Acordei com uma mão nos
meus cabelos e meus olhos se abriram devagar ainda saindo da vigília. Olhei para
o dono das mãos e vi Pessoa. Seu rosto estava sereno em meio aos óculos, aos
olhos castanhos e ao bigode grosso e escuro. Seu chapéu preto e característico
jazia ao seu lado na cama. Tinha uma pena e um caderno nas mãos. Pensei em
dizer alguma coisa, mas emudeci frente aquela presença. Tinha tantas falas na
cabeça, tantas coisas para perguntar e minha voz simplesmente não saia, só
conseguia olhar sem palavras a face do escritor. Queria lhe dizer da minha
solidão e dos seus livros que preenchiam as minhas noites, seus livros longos e
tormentosos, porém belos. Seus livros tão seus e dos seus outros, críticos de
si mesmo. Queria dizer que eu tenho em mim todos os sonhos do mundo e que isso
me move, mas também não me deixa dormir. Queria dizer um sem fim de frases, de
sentenças bem formuladas, mas estas simplesmente não saiam, então, permaneci quieta
e me deixei impregnar pela aura do poeta. Pessoa sorriu e apontou para a minha
mesa de cabeceira. Olhei e lá estava meu exemplar do Livro do Desassossego com
suas páginas desgastadas e amareladas pelo uso, ele era um reflexo de mim
mesma, um mar de poesia e tormentas. Virei novamente para contemplar o rosto de
Pessoa, mas ele não estava mais lá. Não importava. Fechei os olhos e me deixei
inundar dos seus versos.