sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Este conto é um viajante, mas... por que não viajar às vezes? Se você gosta de Machado e de tristes histórias de amor, sinta-se convidado a ler.


Olhos de ressaca
Chovia torrencialmente. Minha camisa colava no corpo, meus tênis estavam encharcados e eu conseguia escutar o barulhinho dos meus pés esmagando a água e das minhas meias engolindo minhas pernas. Eu nem ligava. Havia acabado de terminar um namoro mal resolvido e confuso, repleto de discussões, choros e pedidos não atendidos, que tinham como pano de fundo uma cama cheia de lembranças vazias e uma cortina desbotada como meu velho relacionamento.
Sentia falta da adolescência, daquele frescor de possibilidades que bate no rosto junto com o vento. Me lembrei dos amores primaveris, da facilidade com que eles começavam e terminavam, sem dor e sem tormento. Pensando bem, havia tormento, mas o tipo que pode ser chorado sem o peso de alguns anos a mais. O cigarro escondido na varanda soa tão mais rebelde antes dos vinte. Quando se fica mais velho, mas não tão velho assim, quando se está na faculdade, com trabalhos e responsabilidades pra dar conta, com planos de entrar no mestrado e ser um adulto de verdade, se perde o direito à rebeldia e a dias depressivos e isolados de chuva. É preciso pragmatismo. Resolver, resolver, resolver! Este é o lema. Produzir, produzir, produzir! Esta é a ordem.
E eu como rapaz latino americano, sem dinheiro no bolso, sem posto de chegada, sem beijo de namorada, tomei mais um gole da minha cerveja, a qual  todos os males amenizava com seu efeito embriagante. Aquela garrafinha me deixava cada vez mais próximo do esquecimento e só faltava o meu grande parceiro de nicotina com sua fumaça dançante e inebriante para que eu entrasse na mais completa paz. Tudo que eu queria era desanuviar ou talvez entrar em êxtase, um êxtase descompromissado, sem chamadas perdidas, conversas profundas e mal acabadas, sem choros e carências. No auge da minha envelhecida mente de vinte e dois anos, mesmo errando sempre e feio, mesmo não compreendendo a mim mesmo, insistia e batia mil vezes a cabeça no mesmo lugar.
E lá estava eu, andando a passos vagarosos e cumprindo minha rotinha. Quem olhasse de fora, até poderia achar que eu era apenas mais um cara comum, seguindo sua vidinha comum, com suas coisas e papéis amassados e molhados, sendo tomado pela chuva e ansiando por um banho quente, uma toalha, por roupas limpas e secas. De fato, eu era mesmo só um garoto universitário qualquer, até que tropecei no capacho da porta da minha casa, gritei meia dúzia de palavrões e achei aquele bilhete inesperado. “Olhos de ressaca,” foi a primeira coisa que li. Fechei meus próprios olhos umas três ou quatro vezes para ver se não estava sonhando.
Seria eu Bentinho? O Dom Casmurro de uma ou várias Capitus que me dilaceravam a cada namoro com ciúmes, brigas, desconfianças, rupturas e recomeços? Eu ainda não sabia. No entanto, me sentia magnetizado pela força das palavras daquele bilhete. Fiquei ainda um tempo pensando se aqueles poucos dizeres eram mesmo pra mim, mas, pra quem mais seriam? Todos haviam viajado e apenas eu ficara em casa em meio à bagunça, café e solidão.
Abri finalmente a porta, larguei minhas coisas no chão e sem me importar com meu corpo ainda molhado, me deitei na cama para ler e reler mil vezes as mesmas palavras: “Abra meus botões, dispa-me como se fosse a última vez. Seus olhos bem em frente aos meus, seu olhar se afogando no meu mar de promessas revoltas. Eu sou as águas salinas, você nadador. Eu sou maré, você é brisa. O mundo está ao seu dispor, mas um mundo frágil, mundo de mar, que consome, come, areia e gente. Esses são meus olhos e você é só pescador tomado pela ressaca.”
Meu coração deu um nó, pulsava como um prisioneiro na camisa-de-força, estava apertado, estrangulado, ansioso, tudo numa coisa só, tudo num bater frenético de curiosidade, excitação e frenesi. Mais uma mulher, mais dores no peito e noites mal dormidas de amor. A mesma coisa de novo, mas dessa vez diferente, pois aquela era Capitolina e eu, escritor de horas vagas, por tê-la, por poder me afogar em seus olhos, podia ser agora personagem de Machado, seu colega, parte de seu romance. Naquele momento, mesmo sabendo o desfecho trágico de minha história, assumi para mim o fardo de ser Bento, de ser pecador, santo, Santiago.
Precisava saber quem era minha Capitu, precisava tê-la em meus braços antes que meu temido e imaginário Ezequiel aparecesse. Um triângulo de amor é composto por três pessoas e no meu havia apenas duas, dentre as quais, uma era apenas uma face desconhecida com uma letra arredondada. Só esperava encontrá-la, tocá-la e, como em uma grande história de amor sem hora marcada, reconhecê-la e me reconhecer em seus olhos e em sua cara lavada. Queria ser, enquanto ela me tivesse, o último e o primeiro.
E nisso, passaram-se dias e mais de ansiedade, corações e mais corações sufocados e eu morria a cada momento. Não comia mais direito, não dormia mais direito, não estudava, não escrevia, não produzia. No meu papel de Bentinho, minha obsessão era Capitu. Capitu e seus bilhetes, sempre assinados com o pseudônimo “Olhos de Ressaca” e sempre com promessas volúveis de um encontro em carne, sangue e osso.
Até que um dia, aquele belo dia, ouvi alguém bater à minha porta e já desesperançado, abatido e com olheiras profundas dignas de Baudelaire em seus áureos tempos ópio, fui atender aos chamados daquele que vigorosamente me requisitava. E lá estava ela, minha Capitolina, a menina dos meus olhos, dos olhos de ressaca. Fui tomado pelos prazeres proporcionados pela Dopamina e pela noradrenalina, ou vulgarmente falando, me senti inteiramente apaixonado, mais apaixonado do que nunca fui capaz de estar. Fui hipnotizado, como um garotinho na loja de doces, por seu sorriso encantador e perfeito. E então eu não era mais eu, eu era um amante, um amado, um narrador suicida que só desejava mergulhar e se afogar naqueles olhos.
Ela entrou sem dizer nada e eu a segui como um servo resignado. Eu a queria como se quer a vida, como se quer a morte, como tudo que há de divino e bárbaro. Finalmente ela estava em meus braços e enfim eu podia sentir sua pele, seu cheiro doce de sândalo e rosas, podia olhar seus olhos castanhos e tocar seus cabelos longos e anelados. Seu corpo era um mar de curvas onde eu poderia me perder para sempre e nós nos beijávamos e amávamos como se luz nunca fosse se retirar para dar lugar ao sol nascente.
Então, quando, imersos em silêncio de cumplicidade, descansávamos, fixei, sem querer, meus olhos em um ponto embaçado. Com esforço para enxergar, o objeto foi tomando forma, se revelando e se tornando nítido, até que eu reconhecesse aquelas folhas amarelas e gastas e aquela capa entreaberta e amarrotada que ainda me permitia ler uma antiga dedicatória de tempos de amor. Lá estava Dom Casmurro, o livro que se fazia persona e que me olhava com meus próprios olhos de memória.
De repente me dei conta de tudo e percebi que em meu peito não mais se aconchegava Capitu. Eu estava imerso num líquido escarlate e viscoso e meu corpo jazia sem vida. Sim, eu estava morto, ou, pelo menos, à beira da morte. Minha face estava gélida e, ao longe, ainda podia escutar o soluço choroso daquela que acabara com meu último sonho de uma noite de verão.
Todo meu romance, meu amor, meu lirismo, minha dama com olhos tomados pela revolta do mar não passaram de um momento de devaneio de alguém que agoniza numa cama vazia, vermelha e silenciosa. Ela havia me matado, não Capitu, minha ilusão onírica, mas sim a mulher real, um ser amargurado e triste. Compreendi, então, que eu não era o verdadeiro Bentinho, ela era. Eu, que me enganara a vida toda, descobri ser, na verdade, Capitu, não no gênero, mas na alma. Assim como a personagem, morri jogado na cova do ciúme e do ressentimento e fui tragado pelos meus próprios olhos de ressaca. Sem saber de nada, fui Daniel na cova dos leões e entreguei um punhal em forma de livro ao meu assassino.