sábado, 18 de outubro de 2014

Uma aula horrível às vezes tem que servir para alguma coisa. Em meio ao meu tédio da aula de português, produzi esse conto. Fiquei pensando em como a língua portuguesa se sentiria se estivesse no meu lugar.

Aula de Português

Era uma noite quente de primavera e o mormaço abafava toda a sala. O único ventilador do espaço girava em sentido horário produzindo um zumbido irritante. Ao longe, uma voz monocórdia se propagava pelo ar. O ritmo daquela voz lembrava o de uma missa cantada em latim.
Sentado numa cadeira de canto, o português se remexia num tédio sem fim e suspirava. Era como se tivessem apagado suas palavras e destruído sua morfologia. Sua sintaxe não fazia mais sentido e suas sentenças perdiam pouco a pouco a coesão e a coerência. Os verbos se embaralhavam esmorecidos e sua entoação jazia pálida como um cadáver no chão.
Ele coçou a cabeça pensativo, seu corpo brigava com suas pestanas para que ele não dormisse. Nunca na vida se sentira tão chato. Nem parecia mais aquela língua forte e cheia de vigor dos poemas de Pessoa, dos romances de Machado, dos fluxos de consciência de Clarice.
Lembrava nostálgico e melancólico dos seus tempos de ousadia modernista. Seu coração pulsava com as metáforas, com os coloquialismos, com as apropriações cinematográficas. Fora um verdadeiro vanguardista e dera a cara à tapa aos críticos. Não se importava com isso, queria ser a língua da inovação, queria vencer os arcaísmos.  
Até na mesa de bar seria mais feliz. Com toda a certeza! Mas naquela sala de luz azulada da universidade suas bochechas em forma de “p” perdiam a vivacidade e a figura do professor o aborrecia. Como aquela criatura era capaz de fazer dele uma coisa tão insuportável e opressora?  Pensou o português. Nem na gramática normativa ele se sentia tão chato e monótono quanto naquela voz docente.
O relógio na parede bateu nove horas e a aula chegou, enfim, ao seu término. Todos saiam apressados e o português levantou sorumbático da cadeira. Não queria conversar com ninguém, queria se esconder no dicionário de tanta vergonha. Caminhou até a porta da sala e num passo abatido se arrastou pelo corredor.

De repente, em meio ao silêncio dos seus pensamentos, um súbito ânimo invadiu seu corpo. Ouvira uma música linda de Chico saindo de um celular e vira em cartazes palavras da língua portuguesa clamando pela revolução. Seu coração se aqueceu de fonemas dançantes. Um grito de alegria se agitou em sua garganta. Não era o grandessíssimo chato que o professor o fizera parecer. Era a língua de Camões, afinal! Era língua de obras primas, língua de Graciliano, língua inventada e reinventada, era língua viva. Ergueu-se, então, sobre os dois pés, apoiou-se nas letras, declamou um poema e saiu saltitante. Ainda tinha muito o que fazer.