Madrugada na cidade
Cheguei e era quase
manhã, o ônibus havia me deixado no pior lugar possível. Seis meses fazendo o
mesmo caminho, seis meses sem sextas feiras, sem noites de Lapa, sem minha
cidade carioca querida abençoando minhas farras, andanças, cortejos e
bebedeiras. E eu ainda conseguia perder a parada. Viajei sozinha desta vez e
peguei o ônibus de horário diferente. Desci no lugar errado, no meio de uma
ponte sem calçada, onde carros passavam tinindo. Sai cambaleante, com o sono
tragando minhas pernas, uma mochila pesada nas costas, e senti o ar das cinco
batendo no meu rosto. A acanhada cidade me recebia com uma mistura de silêncio,
calor e nostalgia.
Por mais que aquela
rota já me fosse conhecida, havia algo mágico no ar. Era como se os espíritos
do pequeno cemitério citadino me acompanhassem, brincando com meus sentimentos,
brincando com o fim de noite e com a minha solidão. Uma solidão combinada com
pensamentos. Eu não me sentia triste, nem com necessidade de companhia, eu me
sentia livre. Ninguém me conhecia, as ruas estavam vazias, e eu podia apenas
observar e imergir nas minhas próprias reflexões.
Caminhei como uma
criança que vê a pracinha pela primeira vez. Senti os ares da cidade, observei
as casinhas bem decoradas da vizinhança, reparei em cada detalhe dos jardins.
Contemplei o céu tomado pelas estrelas que se curvavam à rainha lua e me senti
feliz por ser olhada por aquela que, em todo mundo, ilumina os amados e os
amantes. Percebi um senhor varrendo a calçada e, diante de algo tão comum, me
vi consumindo com os olhos aquela imagem, como se fosse algo novo e
inacreditável.
Olhei o cemitério, o
qual se localizava numa inclinação. Passei o olhar nos túmulos simples
projetados para a rua, nas paredes descascadas e no portão gradeado, azul e
velho. Pensei em tudo o que aquele portão já teria visto. As velas, os abraços,
os consolos, as flores tristes e apagadas, os olhos apagados, os olhos
lacrimosos, as despedidas tão difíceis. Lembrei de como é difícil dizer adeus e
uma lágrima quente desceu pelo meu rosto. Desanuviei minha mente da tristeza
repentina, sorri e lembrei que os olhos que vêem a morte, também vêem a vida
nascendo e renascendo todos os dias.
O fim do meu caminho se
aproximava e eu andava cada vez mais devagar para prolongá-lo, então percebi
que, em meio a minha ânsia de correr, de trabalhar, de ir embora, nunca havia
notado verdadeiramente aquela cidade. No entanto, com a madrugada se
transformando em raiar matutino, com a hora que passava tranquila, enquanto eu
seguia minha marcha pelo pequeno deserto urbano, fui devorada pelo cotidiano
daquelas alamedas, pelo cotidiano daquelas pessoas que eu não via, mas que
podia imaginar, e pela vida latente no silêncio da alvorada. Naquele momento,
éramos apenas eu e a cidade. Não havia dor, nem mágoas, nem choros, nem perdas,
nem memórias de um passado triste, somente um diálogo silente e compreensivo
entre mim e o que se apresentava ao meu redor. Ali, descobri um pouco mais do
mundo e, certamente, descobri um pouco mais de mim.