terça-feira, 21 de abril de 2015

Aquela força tão oculta, mas tão oculta...

Amiga oculta

Não vai se matar, viu? As palavras tremulavam na boca da irmã. Não percebe? Já estou me matando. A outra acendeu mais um cigarro. Estou corroída de falsos sorrisos. Não quero fingir que estou feliz. A cortina da sala balançou, fazendo sombra na face da moça. Ela colocou uma mão sobre a testa. Você me perguntou se estava tudo bem. Não fazia questão de responder, mas você perguntou. Oras, você perguntou. Ela se sentou num sofá inundado de papéis e livros. A irmã sorriu por não ter mais como ajudar. Ela não sabia como, não compreendia a angústia da outra, o afundamento no próprio eu. Seu desejo era poder fazer com que suas piadas medíocres sobre o dia-a-dia melhorassem o humor da casa. Meu problema não é de humor, se é o que você está pensando. Não estou pensando nada, pare de bobagens. Bobagens, bobagens... você, mamãe, papai vivem me dizendo que isto é bobagem, que me falta colocar a cabeça erguida, que é só uma fase. Você acha que me sinto feliz sendo infeliz? E acendeu mais um cigarro, o qual queimou como fogo queima o papel. Tudo bem, tudo bem, não vou dizer mais nada. O que está dito, está dito. Não esqueça de tomar seus remédios. Já tomei, não funcionam para nada, mas eu tomo. Todos os dias, nos mesmos horários. Gostaria que eles fizessem algum efeito, além de me deixarem dopada. Como se a vida já não me deixasse eternamente dopada. A vida é uma droga. Maconha seria bom. Você não deveria se drogar. Mais do que já me drogo com todas essas “inas” ? O ambiente era de tensão. A irmã se angustiava com os anseios inquietos da outra. O que fazer? Queria não voltar mais ali e viver sua própria vida, sua própria cama confortável, seus prazeres normais, sexuais e humanos. Mas se sentia impelida a ficar. A outra era sua irmã, afinal. Os pais já não sabiam o que fazer, contavam com ela. O vento balançou as cortinas novamente, a rua parecia um lugar alegre em contraposição ao ambiente lúgubre da sala. Você está gastando sua vida! E se não houver outra vida além desta vida? O que resta para ser vivido, senão isto? O sentimento de impotência preencheu de vez o peito da irmã. Era sufocante. Queria esbofetear a outra com toda a sua força. Pensou que ela roubava duas vidas e não apenas uma. Era a juventude que esmorecia a cada crepúsculo dos dias. Queria mudar o curso da inércia, da estagnação ao movimento. Todavia, acendeu um cigarro e sentou ao lado da outra irmã. Fumaram juntas. 

domingo, 19 de abril de 2015

Conversei com um professor sobre a importância de saber usar a terceira pessoa. Acho que ainda não a domino. Sempre me sinto mais confortável na posição do eu. Talvez seja um problema da minha geração. Eu isso, eu aquilo, não o outro. Enfim, este é apenas um treino, como todos os outros textos. Bom ou ruim, serve como um teste de descrição do outro, do que seria o outro, partindo do eu. Enfim, boa leitura!

O cheiro
Era uma segunda-feira, dia em que Márcia quase sempre trabalhava até mais tarde. Tudo o que tinha sido acumulado na outra semana era organizado e terminado. Naquele segunda-feira específica, no entanto, o trabalho não era muito e acabou mais cedo do que o previsto.  Feliz, Márcia foi para casa, esperando encontrar o marido e aproveitar o tempo livre de um dia qualquer.
Assim que abriu a porta, sentiu um cheiro forte pairando no ar. Suas narinas foram incendidas e seu olfato apurado fazia com que quase fosse possível sentir o gosto daquele perfume adocicado. Incrédula, pôs em xeque a capacidade de análise dos seus próprios sentidos. Era possível que o marido estivesse fazendo o que ela pressentia que ele fazia? Seu estômago embrulhou e ela teve vontade de vomitar. Dentro de sua própria casa, como ele teve tamanha coragem? Ela se perguntava entristecida.
Haviam conversado muitas vezes sobre aquilo. Ela sempre dizia que o lado dele era compreensível. Todos temos instintos, Márcia repetia sem muita credulidade. Ele sempre concordava com um rosto brincalhão e mudo. Ela sorria. Realmente acreditava que ele havia abandonado os tempos antigos e que tinha se tornado uma pessoa diferente. Mas, as roupas amassadas no sofá e aquele cheiro que impregnava os ambientes não mentiam. O marido nunca havia deixado de lado os velhos hábitos.
Márcia estava desnorteada. Queria dar um passo adiante, queria gritar, mas se sentia paralisada, com medo de perceber que seus instintos estavam certos, medo de ver que seu companheiro de tantos anos não era a pessoa que ela julgava tão bem conhecer. Uma música dançante ressoava dos alto-falantes do celular do marido, ele devia estar se divertindo. Apesar do coração acelerado, Márcia caminhava sorrateira, com o rosto sisudo e os olhos quase em lágrimas. Ela não queria desculpas. Ele teria que admitir.
Ao chegar à cozinha, Márcia viu o marido. Ele não vestia quase nada, apenas um avental de cozinheiro. O cheiro estava mais forte do que nunca e a louça suja atulhava a pia. Na mesa, um prato com restos de sangue. A frigideira chiava ao receber mais um pedaço grande de bife.
O marido sentiu uma presença na cozinha e voltou a cabeça para trás. Márcia estava parada na porta, com as pupilas dilatadas e lacrimosas. Ao ver sua esposa, ele arregalou os olhos e se encolheu como uma criança arteira sob o julgo da mãe. Era a primeira vez que ele comia carne em anos. Desde que havia começado a namorar Márcia, adotou para si o vegetarianismo, pois ela era apaixonada pelos animais e ele, apaixonado por ela.  Todavia, sua memória gastronômica, mesmo depois de trinta anos, ainda o perturbava com a lembrança de uma picanha mal passada ou de uma fraldinha ao alho.
Ele faria cinquenta anos em um mês. Que mal havia em comer uma ou duas bistecas? O que era um coraçãozinho de galinha? O que era uma costelinha de porco? Ah, uma deliciosa costelinha de porco... Às favas com esse vegetarianismo! Ele levantou a cabeça, queria se rebelar. Estava cansado de não comer o que queria comer.
Márcia permanecia imóvel como uma estátua. Apenas seu rosto se movia em sorrisos tortos de desgosto. Ela se sentia traída. Era preferível vê-lo com outra mulher a vê-lo aos beijos com um pedaço de filé mignon sangrento. Depois de trinta anos, três filhos criados, e umas muitas horas perdidas explicando as vantagens do vegetarianismo para si e para o ambiente, ele ainda era capaz de se deliciar com alguns pedaços de cadáver.
O marido caminhou até Márcia, estava decidido a não voltar atrás. Ele amava a esposa, mas queria poder comer o que quisesse. Com um garfo em punho e seminu, andou como um soldado em direção ao tiro de guerra. Os olhos de Márcia o fuzilavam. Colocou a mão no rosto da esposa, queria começar a falar, abriu a boca, sentiu seu próprio hálito de sangue e alho, respirou fundo, engoliu as palavras. Fria, Márcia se virou e saiu em direção a lugar nenhum.