Bom, primeiro meus agradecimentos ao Bruno Moraes por todas as contribuições e incentivos literários. Me inspirei muito em você! Em segundo lugar, agradeço ao meu ídolo Bukowski, que escrevendo sobre mulheres, me incentivou a também falar sobre os homens e sobre a dor nas costas e na consciência de acordar de ressaca num sofá quebrado. Ser for ler, beba!
Senti aquele maldito
sol arder em meus olhos e queimar minha cara. Foi a deixa pra eu me levantar.
No primeiro impulso de movimento, porém, senti meu corpo ser atacado
traiçoeiramente pela força da ressaca, que, vitoriosa, me fez tombar indigna
naquela coisa que eu mal podia chamar de cama. Minha cabeça latejava como se
meu coração batesse por ela. Doía e doía num sem fim de tum duns e tum duns.
Acho que, na verdade, meu coração estava na cabeça, tinha tomado o lugar do meu
cérebro e ia me atormentar para sempre com seu som pulsante.
Na explosão da minha
mente, me senti como o homem barata de Kafka. Eu era o retrato de um inseto
indesejado, enojante, presente na hora e no lugar errado, sem poder sorrir um
sorriso amarelo, sem máscaras, despenteada como uma Medéia, sem poder fingir
coisa alguma. Tentava me virar, me mexer, acordar, mas permanecia ali, de
costas, agoniada, cheia de náuseas, imóvel, de pernas pro ar, com a vida de
ponta cabeça... tudo por minha culpa, por minha única culpa e pelo grande
catalisador de merdas que é o álcool.
Porra, se eu soubesse
que uma dúzia de cervejas e mais umas doses de Vodca me transformariam num
inseto repugnante, já teria abdicado do álcool faz tempo. Ou não. Eu sempre me
faço essas promessas em vão que eu jamais, em hipótese alguma, cumpro. Aliás,
todo bêbado, quando se dá conta de que está abraçado com uma privada e
colocando até o fígado pra fora ou que está numa situação de merda, a qual, por
uns longos momentos de devaneio, pareceu extremamente sensata e divertida,
promete que nunca mais vai colocar um só gole de etanol na boca. Ledo engano.
No meu ébrio mundo
idílico, me apresentaram o inferno de Dante e eu nem percebi. Atravessei com
meus próprios pés os nove círculos infernais, bati papo com anjos caídos que
fediam a maconha, cigarro barato e cachaça vagabunda, me deixei levar pela minha
mente turva e brilhante, pelo cheiro de fumaça, de excitação e, quando me dei
conta, acordei sem ter nem sequer o diabo como companhia. Que maldição! Se
minha dor de cabeça excruciante e minha ressaca moral me permitissem o dom do
pensamento, eu inventaria novas palavras para praguejar.
Só queria um café e um
cigarro, ou talvez um maço. Estragar meus pulmões lentamente me daria a
esperança de um pouco de paz. Também queria sumir, desaparecer sem deixar
rastros, como se a noite jamais tivesse acontecido, como se tudo não passasse
de um pesadelo e eu pudesse acordar suada sobre o meu travesseiro e ir beber um
copo d’água. Mas não era um sonho ruim, era a realidade que me pisoteava e que
jogava na minha cara a todo tempo que eu só estava ali porque, sim, eu quis.
Por um longo tempo, na verdade, aquele era exatamente o lugar onde eu gostaria
de estar. Não naquela situação deplorável, não é bem disso que eu estou
falando, mas eu fui por minha própria vontade para a casa dele.
A princípio, tudo
parecia bom, parecia quase inocente. Estávamos nós e mais uns amigos numa mesa
de bar em plena quinta feira. Isso já era a constante, nem me dava mais ao
trabalho de falar que tinha coisas pra estudar, que ia trabalhar no dia
seguinte. Me entreguei a vida de cervejas no fim da aula, de papo com os
amigos, de noites sem dormir. Minhas olheiras gritavam nos olhos, mas meu
sorriso, embargado pelas conversas e pelas borbulhas de copos que se enchiam e
esvaziavam, pendia torto e bobo no rosto. Mesmo na rua, cercada dos tipos mais
estranhos, eu estava em casa. E ele estava lá, o tempo todo, sem falar muito,
sorrindo, bebendo, prestando atenção ao que se passava. Eu me encantava com
tudo isso, com aquele seu jeito enigmático, com suas gargalhadas, com a aura
envolvente que girava e brincava ao seu redor. Foi a paixão de momento mais
intensa de toda uma vida, eu podia amá-lo naquele único dia o amor de todo um
pra sempre.
E a noite foi caindo
mais noite e virou madrugada e nós todos, animados, não queríamos deixar que o
dia viesse, nascesse e levasse todas as nossas ilusões e desilusões oníricas.
Andamos por Vila Isabel inteira atrás de bares que estivessem dispostos a nos
receber. Ríamos descontrolados, conversávamos sobre os nossos futuros incertos
e prometíamos que nunca deixaríamos de confraternizar momentos inúteis como
aquele. No auge de nossa filosofia de botequim, no entanto, tudo estava fechado
e fomos obrigados, como cães sem dono, a nos retirarmos mais uma vez para casa.
Foi o fim da festa e foi ali, naquele momento, que me atirei na boca dos lobos.
Não consegui recusar seu convite tão sincero, não consegui recusar segui-lo até
sua casa, só por aquela noite, só para que eu não ficasse na rua, sozinha e exposta
às monstruosidades da civilização moderna.
Todos seguiram seus
caminhos e nós o nosso. O plano era simples, eu dormiria num colchão ao lado da
cama dele e sairia de manhã segura e feliz. Claro que não foi o que aconteceu.
Chegando ao seu doce lar estudantil, sentamos embriagados na cama de um de seus
colegas de casa que estava ausente e que, provavelmente, só voltaria no dia
seguinte. O cheiro de tensão, tesão e pensamentos libidinosos pairava no ar.
Conversávamos trivialidades para fingir, como bons amigos, que nada estava
acontecendo. Mas, em certo momento, foi impossível manter a cordialidade e a
forçada sanidade habitual. Nos agarramos e roupas voaram pelo ar. Admito que,
naquele momento, nada importava. Não pensei no dia seguinte e nem em possíveis feições
constrangidas, nem ele. Éramos apenas dois adultos voltando à adolescência e
descobrindo o sexo alcóolico, intenso e desesperado. Sentíamos fluidos, sangue
quente e suor, uma tremenda ausência de pensamentos concatenados e de bom
raciocínio, raios elétricos por todo o corpo e gemidos abafados que levaram a
uma grande explosão orgasmática em conjunto. Foi como se o sódio reagisse à
água, foi, naquele instante e nos outros cinco segundos seguintes, algo
incrível.
Até que ele abriu os
olhos, levantou e me deixou ali, para dormir sem travesseiro, sem uma coberta,
num sofá quebrado onde eu nem podia me virar para o lado sem desmoronar,
sedenta por um copo d’água que não existia na sua geladeira vazia e mal
cheirosa, sem um ventilador e completamente imersa em suor, em pensamentos
solitários e em sono. Fiquei sozinha e na minha cabeça ecoavam questionamentos
sobre o mundo e sobre as relações entre as pessoas. Talvez eu seja apenas um
ser humano errado e fora do comum, mas sempre achei que, mesmo nas relações
mais casuais, se está junto por infinitos momentos curtos, até que tudo acabe
de fato, num sorriso sem cobranças, com a leveza de um belo pássaro que faz
companhia e voa.
Dormi um sono cansado e
acordei com o maldito sol ardendo em meus olhos e queimando minha cara. Peguei
minhas coisas, calcei meus sapatos, fui ao banheiro, olhei minha imagem no
espelho, lavei o rosto, criei coragem, bati a porta do seu quarto e o chamei. Ele
me olhou e me senti como uma intrusa sofrendo de claustrofobia naquele cômodo
cada vez menor. Fomos à porta e demos um beijo seco e de praxe no rosto. Meu
corpo e minha face me diziam que eu parecia uma sobrevivente de guerra,
dependente de algum sono, aspirinas e um banho decente que deixasse tudo novo e
levasse todos os sentimentos que me oprimiam. Eu só queria estar na minha cama,
dividir com ela aquele sentimento indigno, misto de rejeição, alívio, tensão,
vergonha, paranoia alcóolica e no fundo, bem no fundo, frustração. Frustração
comigo, com ele, com o ótimo sexo misturado à indiferença posterior.
Coloquei meus fones de
ouvido. The Smiths. Nada melhor do que a voz melancólica do Morrissey
embargando, alimentando e acariciando meus sentimentos ressentidos. O sol me
atacava e me informava que independente do que eu sentisse, ninguém se
importava com isso e o mundo continuava a girar. Os proletários trabalhavam, os
bêbados bebiam sua maldita matinal, os mendigos mendigavam e meu rosto torrava
resignado. Só a música me compreendia.
Entrei no ônibus, sentei e me senti um pouco melhor. Observei as pessoas, as
ruas passando e pensei que logo estaria em casa, colocando minhas roupas dantescas
na máquina e empurrando a noite anterior pelo ralo. Finalmente sorri.