terça-feira, 18 de setembro de 2012

Hoje acordei me sentindo meio Kafka.


Bom, primeiro meus agradecimentos ao Bruno Moraes por todas as contribuições e incentivos literários. Me inspirei muito em você! Em segundo lugar, agradeço ao meu ídolo Bukowski, que escrevendo sobre mulheres, me incentivou a também falar sobre os homens e sobre a dor nas costas e na consciência de acordar de ressaca  num sofá quebrado. Ser for ler, beba!


Senti aquele maldito sol arder em meus olhos e queimar minha cara. Foi a deixa pra eu me levantar. No primeiro impulso de movimento, porém, senti meu corpo ser atacado traiçoeiramente pela força da ressaca, que, vitoriosa, me fez tombar indigna naquela coisa que eu mal podia chamar de cama. Minha cabeça latejava como se meu coração batesse por ela. Doía e doía num sem fim de tum duns e tum duns. Acho que, na verdade, meu coração estava na cabeça, tinha tomado o lugar do meu cérebro e ia me atormentar para sempre com seu som pulsante.
Na explosão da minha mente, me senti como o homem barata de Kafka. Eu era o retrato de um inseto indesejado, enojante, presente na hora e no lugar errado, sem poder sorrir um sorriso amarelo, sem máscaras, despenteada como uma Medéia, sem poder fingir coisa alguma. Tentava me virar, me mexer, acordar, mas permanecia ali, de costas, agoniada, cheia de náuseas, imóvel, de pernas pro ar, com a vida de ponta cabeça... tudo por minha culpa, por minha única culpa e pelo grande catalisador de merdas que é o álcool.
Porra, se eu soubesse que uma dúzia de cervejas e mais umas doses de Vodca me transformariam num inseto repugnante, já teria abdicado do álcool faz tempo. Ou não. Eu sempre me faço essas promessas em vão que eu jamais, em hipótese alguma, cumpro. Aliás, todo bêbado, quando se dá conta de que está abraçado com uma privada e colocando até o fígado pra fora ou que está numa situação de merda, a qual, por uns longos momentos de devaneio, pareceu extremamente sensata e divertida, promete que nunca mais vai colocar um só gole de etanol na boca. Ledo engano.
No meu ébrio mundo idílico, me apresentaram o inferno de Dante e eu nem percebi. Atravessei com meus próprios pés os nove círculos infernais, bati papo com anjos caídos que fediam a maconha, cigarro barato e cachaça vagabunda, me deixei levar pela minha mente turva e brilhante, pelo cheiro de fumaça, de excitação e, quando me dei conta, acordei sem ter nem sequer o diabo como companhia. Que maldição! Se minha dor de cabeça excruciante e minha ressaca moral me permitissem o dom do pensamento, eu inventaria novas palavras para praguejar.
Só queria um café e um cigarro, ou talvez um maço. Estragar meus pulmões lentamente me daria a esperança de um pouco de paz. Também queria sumir, desaparecer sem deixar rastros, como se a noite jamais tivesse acontecido, como se tudo não passasse de um pesadelo e eu pudesse acordar suada sobre o meu travesseiro e ir beber um copo d’água. Mas não era um sonho ruim, era a realidade que me pisoteava e que jogava na minha cara a todo tempo que eu só estava ali porque, sim, eu quis. Por um longo tempo, na verdade, aquele era exatamente o lugar onde eu gostaria de estar. Não naquela situação deplorável, não é bem disso que eu estou falando, mas eu fui por minha própria vontade para a casa dele.
A princípio, tudo parecia bom, parecia quase inocente. Estávamos nós e mais uns amigos numa mesa de bar em plena quinta feira. Isso já era a constante, nem me dava mais ao trabalho de falar que tinha coisas pra estudar, que ia trabalhar no dia seguinte. Me entreguei a vida de cervejas no fim da aula, de papo com os amigos, de noites sem dormir. Minhas olheiras gritavam nos olhos, mas meu sorriso, embargado pelas conversas e pelas borbulhas de copos que se enchiam e esvaziavam, pendia torto e bobo no rosto. Mesmo na rua, cercada dos tipos mais estranhos, eu estava em casa. E ele estava lá, o tempo todo, sem falar muito, sorrindo, bebendo, prestando atenção ao que se passava. Eu me encantava com tudo isso, com aquele seu jeito enigmático, com suas gargalhadas, com a aura envolvente que girava e brincava ao seu redor. Foi a paixão de momento mais intensa de toda uma vida, eu podia amá-lo naquele único dia o amor de todo um pra sempre.
E a noite foi caindo mais noite e virou madrugada e nós todos, animados, não queríamos deixar que o dia viesse, nascesse e levasse todas as nossas ilusões e desilusões oníricas. Andamos por Vila Isabel inteira atrás de bares que estivessem dispostos a nos receber. Ríamos descontrolados, conversávamos sobre os nossos futuros incertos e prometíamos que nunca deixaríamos de confraternizar momentos inúteis como aquele. No auge de nossa filosofia de botequim, no entanto, tudo estava fechado e fomos obrigados, como cães sem dono, a nos retirarmos mais uma vez para casa. Foi o fim da festa e foi ali, naquele momento, que me atirei na boca dos lobos. Não consegui recusar seu convite tão sincero, não consegui recusar segui-lo até sua casa, só por aquela noite, só para que eu não ficasse na rua, sozinha e exposta às monstruosidades da civilização moderna.
Todos seguiram seus caminhos e nós o nosso. O plano era simples, eu dormiria num colchão ao lado da cama dele e sairia de manhã segura e feliz. Claro que não foi o que aconteceu. Chegando ao seu doce lar estudantil, sentamos embriagados na cama de um de seus colegas de casa que estava ausente e que, provavelmente, só voltaria no dia seguinte. O cheiro de tensão, tesão e pensamentos libidinosos pairava no ar. Conversávamos trivialidades para fingir, como bons amigos, que nada estava acontecendo. Mas, em certo momento, foi impossível manter a cordialidade e a forçada sanidade habitual. Nos agarramos e roupas voaram pelo ar. Admito que, naquele momento, nada importava. Não pensei no dia seguinte e nem em possíveis feições constrangidas, nem ele. Éramos apenas dois adultos voltando à adolescência e descobrindo o sexo alcóolico, intenso e desesperado. Sentíamos fluidos, sangue quente e suor, uma tremenda ausência de pensamentos concatenados e de bom raciocínio, raios elétricos por todo o corpo e gemidos abafados que levaram a uma grande explosão orgasmática em conjunto. Foi como se o sódio reagisse à água, foi, naquele instante e nos outros cinco segundos seguintes, algo incrível.
Até que ele abriu os olhos, levantou e me deixou ali, para dormir sem travesseiro, sem uma coberta, num sofá quebrado onde eu nem podia me virar para o lado sem desmoronar, sedenta por um copo d’água que não existia na sua geladeira vazia e mal cheirosa, sem um ventilador e completamente imersa em suor, em pensamentos solitários e em sono. Fiquei sozinha e na minha cabeça ecoavam questionamentos sobre o mundo e sobre as relações entre as pessoas. Talvez eu seja apenas um ser humano errado e fora do comum, mas sempre achei que, mesmo nas relações mais casuais, se está junto por infinitos momentos curtos, até que tudo acabe de fato, num sorriso sem cobranças, com a leveza de um belo pássaro que faz companhia e voa.
Dormi um sono cansado e acordei com o maldito sol ardendo em meus olhos e queimando minha cara. Peguei minhas coisas, calcei meus sapatos, fui ao banheiro, olhei minha imagem no espelho, lavei o rosto, criei coragem, bati a porta do seu quarto e o chamei. Ele me olhou e me senti como uma intrusa sofrendo de claustrofobia naquele cômodo cada vez menor. Fomos à porta e demos um beijo seco e de praxe no rosto. Meu corpo e minha face me diziam que eu parecia uma sobrevivente de guerra, dependente de algum sono, aspirinas e um banho decente que deixasse tudo novo e levasse todos os sentimentos que me oprimiam. Eu só queria estar na minha cama, dividir com ela aquele sentimento indigno, misto de rejeição, alívio, tensão, vergonha, paranoia alcóolica e no fundo, bem no fundo, frustração. Frustração comigo, com ele, com o ótimo sexo misturado à indiferença posterior.
Coloquei meus fones de ouvido. The Smiths. Nada melhor do que a voz melancólica do Morrissey embargando, alimentando e acariciando meus sentimentos ressentidos. O sol me atacava e me informava que independente do que eu sentisse, ninguém se importava com isso e o mundo continuava a girar. Os proletários trabalhavam, os bêbados bebiam sua maldita matinal, os mendigos mendigavam e meu rosto torrava resignado.  Só a música me compreendia. Entrei no ônibus, sentei e me senti um pouco melhor. Observei as pessoas, as ruas passando e pensei que logo estaria em casa, colocando minhas roupas dantescas na máquina e empurrando a noite anterior pelo ralo. Finalmente sorri.

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

O velho novo conto. Esse foi o primeiro conto que tive coragem de publicar. Sei que sou apenas uma amante capenga da literatura, mas talvez como uma prostituta ou como uma mãe, aquela sempre abre os braços e as pernas para todos que a buscam com afinco e que com ela sentem prazer. Boa apreciação ou seja lá o que for.


Encontro com Jorge
Caminhava tranquilamente por aquela rua de Copacabana, não me lembro ao certo se era a Nossa Senhora ou a Barata Ribeiro, mas isso não importa de fato. A noite era amena e, embora eu precisasse chegar logo a Niterói, meus passos corriam vagarosos enquanto eu observava as pessoas, a rua e a paisagem ao meu redor. Estava pensando na vida, pensando em como tudo muda de maneira veloz, em como o mundo nos engole com a ferocidade de uma besta de contos medievais.
Finalmente tinha encontrado o ponto certo para o meu ônibus. Com tantas mudanças nas linhas de transporte, confundi-me e andei quilômetros até encontrar o lugar exato onde parar. Com uma mochila pesada nas costas e cheia de sacolas nas mãos, decidi sentar um pouco e apoiar aquele peso em um canto qualquer.
 Foi então que algo incrível aconteceu. Uma senhora que também esperava no ponto colocou um livro em cima do banco em que eu estava sentada e saltou para dentro de seu ônibus. Não entendi nada e antes que ela pudesse partir, disse-lhe que estava esquecendo um livro. Ela virou-se rapidamente e falou que já tinha aquele exemplar e que deixaria aquele outro ali para quem quisesse levá-lo.
Fiquei extasiada! Eu que sempre tive paixão por livros, ganhava um no local mais inesperado do mundo, uma paragem de ônibus. E não era só isso, aquela não era uma obra qualquer, era a Bahia de Todos os Santos, de Jorge Amado.
Foi amor à primeira vista. Apaixonei-me por aquela capa envelhecida e vermelha com o nome de Jorge cravado diversas vezes. Olhei com carinho o título pequenino ao lado, dourado e encantador. Folheei as páginas amareladas, marcadas pela força do tempo, como se aquele livro contivesse os desejos e a imaginação de muitos. Consegui sentir o que os que o leram antes de mim sentiram. A ânsia de continuar devorando as palavras e conhecendo um pouco mais as igrejas, as macumbas, os terreiros, as comidas típicas, a lavagem da igreja de Nosso Senhor do Bonfim, mas, ao mesmo tempo, uma vontade de que aquela experiência única de lugares e personagens não acabasse nunca.
Esqueci que tinha um caminho a fazer, esqueci das sacolas, esqueci até mesmo de mim, só conseguia me concentrar naquele novo mundo que se abria bem diante dos meus olhos. Seus cheiros, visões e sabores, os quais eu quase podia tocar, como se fossem velhos amigos de infância, velhos conhecidos de outrora. Cada vez que abria o livro, sentia-me como Alice, Alice na cidade de São Salvador, Alice de todos os Santos. Por que não? Afinal, o País das Maravilhas fica onde menos se espera, em todos os lugares ou em lugar nenhum.
Em meio aos meus devaneios de coelhos, cartolas, terços e oferendas, senti a mão de um homem em meus ombros e ouvi de longe sua voz dizendo que estava tarde e que o ponto estava ficando vazio. Sem pensar muito, acabei perguntando seu nome. “Jorge”, ele me respondeu. Sorri como alguém que guarda um segredo só pra si e agradeci ao homem, ao amado, ao bem amado. Entrei no ônibus que chegava, pensando na mágica da leitura, naquela força sobrenatural que faz com que você se sinta como um bebê que saiu do útero de sua mãe e abriu, pela primeira vez, seus olhos para os descobrimentos e interrogações de um universo que te traga, te interroga e te deslumbra.