quinta-feira, 3 de março de 2016

As crônicas são essenciais para que possamos aguentar nosso dia-a-dia pós-moderno. Em meio ao empilhamento de informações, descrito por Bauman, talvez, com essa escrita que fala da vida ao rés do chão, sejamos capazes de rir da nossa modernidade falida que se transformou em liquidez. Viva a crônica, viva o voyeurismo do cotidiano.

Causos de causa menor

Sempre odiei ir à academia. Acho um ambiente sufocante. Pessoas suadas, equipamentos que parecem de tortura, uma música eletrônica irritante, muita gente cheia de sorrisos dizendo que todo o esforço na esteira valerá a pena, olhos de desaprovação, narcisos admirando seu próprio reflexo no espelho e grunhindo coisas sem sentindo, discussões sobre dietas, shakes e sobre o quanto é importante perseguir seus objetivos e ter força, foco e fé. 
Todo o espaço e toda a dinâmica das academias se baseiam em dizer que você nunca terá um corpo bom o suficiente. Sempre é possível ser mais musculoso, mais magro, mais fitness, mais isso ou mais aquilo. 
No entanto, a contragosto e ao gosto de um corpinho que já está mais próximo dos trinta do que dos vinte, cedi a uma nova série de musculação. Como sempre, entrei na academia com um sorriso amarelo. Se pudesse, entraria como a mulher invisível. 
Ao chegar, acenei timidamente para as recepcionistas e disse bem baixinho, quase como se não quisesse ser ouvida, que tinha marcado um horário com a professora para refazer minha série. Uma moça simpática me disse que ela ainda não havia chegado. Respirei aliviada. Ainda teria dez minutos de folga antes que alguém começasse a escrutinar todo o meu corpo numa situação de puro desconforto. 
As perguntas de praxe eu já sabia: " por que você quer fazer musculação? Estética, necessidade, condicionamento ou velhice mesmo? Bebe? Fuma? Problemas com a família?" 
Talvez eu devesse sentar e discorrer sobre todas as minhas questões familiares. " Quando eu tinha dez anos, meu pai..." Mas eu estava na academia e não no analista. 
A professora chegou e tudo que eu previra aconteceu. Respondi as perguntas e tentei fazer uma piada para quebrar o gelo. Foi tão sem graça que tive vergonha de mim mesma. Decidi então me calar e apenas fazer o que me fosse mandado. 
"Começamos então com um aeróbico, ok? Qual você prefere?" Pensei um pouco e respondi que tudo bem, que poderíamos começar com a esteira, mas queria responder que tanto fazia. Afinal, eu não gostava de nenhum. 
"Do que, então, você gosta?", a professora perguntaria. Eu diria que de cinema, livros, exposições, de escrever e do momento em que termino o último exercício do dia e posso ir pra casa. Não sei se é a endorfina ou um hormônio qualquer, mas me sinto uma vencedora nesse momento. Fiz todos os exercícios do dia e posso, enfim, ficar em paz com os meus músculos doloridos. 
Caminhei desolada para a esteira mais escondida, coloquei os fones de ouvido e rezei para que uma música qualquer me animasse. Era o primeiro de uns doze exercícios que viriam pela frente. 
Talvez eu tivesse até mesmo que encarar um revezamento de aparelho e aí teria que manter um diálogo mínimo com alguém. Definitivamente não era algo que eu queria no meu primeiro dia de volta à musculação. 
Comecei a pensar em crases, em literatura, em deitar no chão da minha casa e observar o teto. Tentei esvaziar a cabeça e fazer dos vinte minutos de esteira um período de meditação. Não consegui. Minhas panturrilhas ardiam e todo meu corpo me lembrava dos anos de sedentarismo. Fosse o que fosse, eu jamais conseguiria ser um monge sobre a esteira. 
Os vinte minutos acabaram e mais uma hora e meia se seguiu. Fiz os execícios tentando sempre me esquivar das pessoas. No entanto, meus planos foram arruinados por um estagiário tagarela e de boas intenções. 
O rapaz era um amor, não posso negar. Mas ele não conseguia perceber o sofrimento nos meus olhos. Além disso, ele falava no diminutivo. Todas as vezes em que ele dizia para eu flexionar as perninhas, uma célula minha morria e eu me tornava ainda mais velha. Seus vinte e um anos me aborreciam e sua energia também. 
O constrangimento e o suor deixavam minhas bochechas da cor de maçãs primaveris. As posições também não eram nada agradáveis. É difícil manter uma conversa quando sua barriga está tão contraída que você mal consegue respirar. 
"Pelo amor de deus", pensei, " cala a boca". O rapaz continuou seu monólogo animado, apesar dos meus olhares de súplica. Eu mexia a cabeça para mostrar que estava escutando, não queria ser antipática. Mas a verdade que revirava meu estômago era que eu mal conseguia prestar atenção.Só queria que aquele garoto gentil e falante me deixasse terminar o maldito exercício e sofrer em paz. 
Uma moça veio e perguntou ao simpático estagiário se ele poderia ajudá-la. Dei um suspiro de alívio e sorri largamente tentando incentivá-lo a ir embora. Ele foi. Meu exercício acabou e levantei satisfeita. Mais uma batalha havia sido vencida. 
Prendi mais forte os cabelos que insistiam em se soltar e andei sorrateira até a porta da academia. Atravessei a catraca e saí. No dia seguinte, eu teria que fazer a mesma coisa, mas ainda faltavam vinte quatro horas até que o dia seguinte chegasse. Decidi aproveitar. 
Pensei, então, por um momento, que eu deveria ter me despedido do rapaz. Ele havia sido tão solícito. Todavia, sem despedidas, talvez ele achasse que eu nunca havia pisado ali. Talvez, sem o fato comprovado, eu nem sequer tenha existido numa academia.