terça-feira, 27 de maio de 2014

Autonomia


Você tapa
Eu abro
Você prende
Eu abro
Você fecha
Eu abro
O que é meu
Eu abro
A boca e o que mais der na telha



quarta-feira, 7 de maio de 2014

A feijoada de domingo

O prato de domingo lá em casa era sempre feijoada.  Era um ritual familiar. Nos reuníamos à mesa às 12 horas em ponto, mamãe, papai, eu e meus quatro irmãos. Achava tudo aquilo muito chato. Fazia anos que aquela mesma cena se repetia, com a única diferença de que agora os personagens estavam mais velhos e cada vez mais mudos. Tudo acontecia sempre igual. Íamos juntos à missa de manhã e à tarde nos juntávamos para olhar cada qual o seu prato e falar frivolidades da vida provinciana e ordinária do Engenho de Dentro.
Mamãe mal abria a boca, sempre fora assim. Vovó dizia com orgulho que havia criado uma moça para casar, recatada, silenciosa e prendada. Uma boa esposa deve cuidar do seu marido e da sua casa, falava minha avó. Mamãe assentia com a cabeça sem discutir. E assim também era com meu pai. Quando ele falava, só se ouvia o eco da sua voz. Mamãe permanecia sempre calada e concordava com tudo, ou pelo menos não discordava. Ela vivia apenas de fazer as vontades do meu pai e de cuidar para que eu e meus irmãos estivéssemos sempre apresentáveis para a vizinhança, pois papai odiava que falassem que seus filhos andavam desleixados e que ele não provia sua família de maneira adequada. 
Papai era um homem severo e imponente. Brigava por tudo e, embora nunca houvesse encostado o dedo para bater em mamãe, descontava nos filhos com pontapés e bofetadas suas amarguras do mundo. Tudo era motivo para nos castigar, até mesmo ter comido o melhor pedaço do porco da feijoada. Ele sempre dizia que éramos o motivo do seu desgosto e que por nossa causa havia perdido os melhores anos de sua vida. Ninguém contestava. Frente à figura autoritária de papai éramos sombras mudas que vagavam com medo pela casa. Éramos fantasmas apagados, loucos para nos livrámos daquele rancor paterno sem motivo que pairava pela casa como vapor de água quente. Apenas meu irmão mais novo ousava desafiar papai.
Aurélio era um menino sério e quase não falava, mas às vezes seu gênio forte baixava como uma pomba gira enlouquecida e ele partia enfurecido para brigas que duravam dias com papai. Entre eles seguia uma guerra silenciosa, em que ninguém se metia. Eu sempre torcia por Aurélio e sonhava com o dia em que aquele corpo franzido e desbotado iria destituir do cargo de chefe da casa os bigodes grossos e autoritários de meu pai. Tinha um carinho especial por aquele irmão, porque, apesar de sua falta de vigor corporal, tinha uma personalidade forte. Mesmo roxo e dolorido, depois de sessões de surras repetitivas, não abaixava a cabeça e encarava com olhos firmes o rosto de seu agressor.
Eu era a quarta dos filhos e a única mulher. Era duro parecer o reflexo de mamãe. Assim como ela, eu não tinha voz firme com meu pai. No único dia em que abri a boca, recebi como pena puxões de cabelo.  Passei dias com dores na cabeça e no orgulho.
Em meio a dores e bocas mudas, representávamos como marionetes nossa rotina. Roupas limpas, cabelos penteados e sorrisos de mármore davam tom à hipocrisia familiar e faziam do cárcere privado um retrato acolhedor para os olhos curiosos dos que estavam de fora. Seguíamos passo-a-passo o roteiro de nossas vidas.  Até aquele domingo de maio.
Ainda consigo me lembrar do cheiro da terra molhada no jardim misturado ao cheiro da feijoada que inundava os cômodos da casa. Ao meio dia em ponto estávamos todos à mesa para encenarmos nossos papéis. Mamãe estava bonita e vestia um vestido vermelho simples. Eu olhava os cantos da sala entediada. Papai fumava um cigarro de palha e esperava a comida. Aurélio olhava com um sorriso no canto da boca a vida se repetir. Tudo parecia como sempre fora.
Mamãe havia colocado o prato de todos, mas primeiramente o de papai. Ele tinha sempre que dar a primeira garfada para que depois pudéssemos comer. Aurélio o contrariou. Pegou seu garfo e comeu um bom naco de costela para em seguida se deliciar com o rosto insatisfeito de papai, que ensandecido levantou da cadeira e foi em sua direção. Eu tremi, meus outros irmãos permaneceram sentados, mamãe, completamente lívida, abriu a boca e, pela primeira vez em anos, deixou que palavras saíssem.
- Sai de perto do Aurélio - ela gritou.
Todos ficamos atônitos. Até Aurélio ficou sem expressão. Mamãe nunca antes nos defendera daquela maneira. Em 17 anos era a primeira vez que eu via mamãe levantar a voz contra papai. Talvez ela estivesse com medo de morrer engasgada com as palavras que não disse ou talvez ela só estivesse cansada de uma existência de nulidade.
Papai ficou com mais raiva ainda, seu rosto estava vermelho e surpreso. Apesar disso, respirou e chegou calmamente perto de mamãe. Não disse nada, mas sua mão voou em forma de bofetada no rosto dela. Apenas o estalido da palmada foi ouvido e todas as nossas vozes e pensamentos se calaram. Papai havia atravessado a última barreira. Fiquei com pena de mamãe e meus olhos se encheram de lágrimas, mas eu não podia chorar. Ninguém era capaz de emitir som algum ou de fazer qualquer coisa. O feijão jazia frio em nossos pratos.
Papai respirou novamente e acendeu mais um cigarro. Como se nada tivesse acontecido sentou na cadeira e mandou que todos se sentassem, menos mamãe. Ele mandou que ela trouxesse para a mesa as laranjas que havia esquecido na cozinha. Com o rosto ainda vermelho e latejante, mamãe foi, mas não trouxe laranjas, trouxe a morte. Depois de um barulho ensurdecedor, papai caiu de cara no prato e sua camisa se encheu de um vermelho escarlate. O cigarro chegou ao chão ainda aceso. Como de costume, não dissemos nada, mas dessa vez o sentimento não era de medo, era um misto de espanto e de uma tenebrosa sensação de liberdade. Em pé, como as mãos trêmulas e o olhar fixo, mamãe sussurrava palavras ao ar:
- Eu disse a ele que, se encostasse em mim uma vez, não faria isso nunca mais.
Foi o último suspiro do tirano.